Monday, August 01, 2011

Crónica de um salto anunciado

"Não há qualquer razão para um ser humano saltar de um avião" diziam-me antes de eu ir saltar de um avião. Eu achava que havia várias mas nenhuma sem o avião estar a arder ou estando-se em tempo de guerra.
Não obstante. Eu saltei.

Andei o mês todo do meu aniversário a pedinchar essa coisa suicida e a minha família e namorada compraram-me a experiência. Não é querido? A ideia de que as pessoas que mais gostam de nós gastaram dinheiro para que nos atirem de um avião a 4200 metros de altitude? Eu ter pedido não é desculpa.

O trajecto até Évora foi feito com piadas sobre morte, música dos Mamonas Assassinas e mais piadas sobre morte. Pelo meio perguntamo-nos o que queríamos ter feito em vida que não fizemos. Respondi "sexo com duas mulheres". O que me deixou a pensar "ora aí está uma experiência a que A Vida É Bela se podia dedicar. Mas não. Só saltinhos de aviões e passeios de limusina. Palhaços."

Chegados ao local, a ansiedade começa a percorrer o nosso corpo mais depressa do que um shot de tequilha às 3h da manhã. Não que a ansiedade nos faça andar pela rua sem calças mas porque a dois quilómetros de distância de chegares ao hangar onde vais pagar para saltar já vês um aviãozinho lá em cima no ar a cuspir pessoas pequenininhas. Aquilo vais ser tu. 5 minutos depois chegas ao hangar e quem é a primeira pessoa que vês à porta? Um homem de cadeira de rodas. Recomeçam as piadas sobre a morte.

Chega a altura de o hangar imitar uma repartição de finanças e teres de preencher 57 formulários com os teus dados. Entregas a papelada a uma mulher demasiado bem disposta e apercebes-te que te dizem "preencha os papeis com calma. Tenha calma. Não há problema. Tenha calma" a cada duas frases. Mas ela acha que as pessoas têm medo de saltar de um avião ou de escrever a sua morada e número de BI a caneta azul?

Preenches tudo, entregas, tentam vender-te saltos mais altos, fotografias, vídeos e/ou pára-quedas suplentes por mais 120 euros com 73% de desconto sobre os decibeis dos teus gritos quando saltares. Numa salganhada de preços e promoções que parecem a feira da ladra, o avião que te vai cuspir aterra atrás de ti. Vestes um conjunto de arneses que te fazem sentir 159 quilos mais pesado - deve ser para chegares cá a baixo mais depressa - e começas a dar atenção ao pormenores mais pequenos. Apertar os sapatos. Bem. Tirar o relógio. É melhor. Aconchegar os testículos na engenhosa e medieval peça de roupa que tens vestida. Como nunca antes o tinha feito.

Chegas ao avião. Começas a perceber que as pessoas à tua volta estão a duvidar da sua sanidade mental. E tu começas a duvidar da tua porque não começas a duvidar da tua. Parece complicado mas faz sentido. Dão-te 17 minutos de instruções de sobrevivência em 3 minutos. Tentas decorar tudo como um puto de apontamentos na mão à porta de um exame. Asseguram-te que "lá em cima" te repetem tudo. Aconchegas os testículos. Entras no avião. Vais saltar e acabou.

Descolas. Suas. Aconchegas. Sorris de forma amarela. Suas. Respiras fundo. E recebes novamente as instruções. Por motivos de ordem mágica decoras tudo. Se a tua vida dependesse de um teorema de Pitágoras tinha-lo decorado antes do exame do 7º ano. Garanto. Apertado dentro de um avião com outras 12 pessoas prestes a apontarem a sua testa ao centro da terra, perguntas a que altitude estás. Não tens noção. É algo entre "bué" e "alto pa' caralho". Respondem-te 1000 metros. Sabes que vais saltar aos 4200. Suas. Aconchegas. Sorris de forma amarela.

E de repente chega a tua vez. Já viste 12 macacos a desaparecerem, sugados por uma porta de avião. Chlump. Não há um senhor de voz grossa a gritar "go, go, go!" como nos filmes. Há gente eléctrica porque já saltou 7000 vezes e gente a suar como um obeso mórbido num clube de strip sem ar condicionado porque nunca saltou. Chlump. Mais um. Chlump. Outro. Chlump. Saltou outro. E é a tua vez. Aproximas-te da porta. Olhas lá para baixo e pensas "ah, é daqui que o Google Maps tira as fotos". Ficas suspenso a 4200 metros de altura e tão depressa como pensas "que bem que eu estava agora no meu sof..." começas a cair. Em direcção ao planeta.

E é espectacular. Mágico. Frenético. Calmo. Mórbido. Sexual. Diferente. Estúpido. E único. É a sensação mais completa, calma e injustificada que alguma vez terás na tua vida. Se pensarem que passam 98% da vossa vida com a gravidade controlada em cima de terreno sólido, não soará estranho que 60 segundos a cair - perdão, a morrer - em queda livre, sem explicação, razão ou grito que vos valha, se sinta no sangue. E é maravilhoso. Em todo o sentido saboroso da palavra. Olhas para a frente e vês o pôr-do-sol. Olhas para baixo e vês risquinhos bem traçados no chão onde um homem diz que acaba o seu quintal e começa o do seu vizinho. Vês terra. Muita terra. Sentes o vento pelo corpo todo. Mas só isso. Vento. Continuas a cair. E a este ponto só queres continuar a cair. Pode ser que acertes numa piscina e não precises do pára-quedas ou assim.

E quando o teu corpo já vai a 200 km/h, de repente e sem aviso, os teus pés aparecem-te no campo de visão. Abriram o pára-quedas. Reduziste para uns 60 km/h, mais coisa menos coisa. Sentes todo e qualquer arnês espalhado pelo teu corpo a apertar. Agradeces a ti próprio teres aconchegado os teus testículos 736 vezes antes e durante o voo. Sugerem-te que conduzas tu o pára-quedas. Dizes que sim já que a este ponto uma luta homem a homem com um TGV parece-te boa ideia. A sobrevivência é uma coisa simples e divertida que, mesmo sem sabermos, gostamos de desafiar. E quando estás a pairar, a não sei quantos metros de altura, pequenino para todos os outros pacóvios que estão agora a chegar de carro para saltarem depois de ti, pendurado por um pára-quedas, a olhar para o horizonte, para o pôr-do-sol... percebes que qualquer coisa mudou.

Quando a pior coisa que te tinha acontecido na vida tinha sido cair de um quarto degrau de um escadote, passar por isto muda uma pessoa. E mesmo que soe, isto não é conversa delico-doce. Muda mesmo. Aqueles 60 segundos são melhores que os 120 de quando perdeste a virgindade ou aqueles 4 de quando ias levando com um autocarro descontrolado numa auto-estrada. Aqueles 60 segundos a cair são teus. Para sempre.

E assim sendo, aterras.
Estás novamente a obedecer à gravidade.
Tentas desentupir os teus ouvidos.
Aconchegaste mais uma vez lá em baixo.
Preparas-te para tentar explicar a todas as outras pessoas na tua vida o que acabaste de fazer.
E percebes que não há qualquer razão para um ser humano querer saltar de um avião.

Mas que tu o queres fazer outra vez.

1 comment:

margarete said...

este fds sujeitei-me a 2 situações de "vertigens" e acabei por estragar o meu sonho mais bonito: o sonho de voar. Após os 2 episódios sonhei o tal sonho de voar mas desta vez caí no sonho, fiquei sem saber se foi um episódio único ou se será uma lesão permanente

bem, o que eu queria dizer é que até para uma pessoa que tem vertigens só de olhar para fotografias de altura consegui ficar nervosa-curiosa :) esta história é muito bonita e está muito bem contada